Aos doadores, tudo. Ao povo, cortes
O vice-presidente da Localiza, Luís Fernando Memória Porto, foi um dos 171 condecorados com a Medalha da Inconfidência pelo governo de Minas Gerais, na última segunda-feira, 21 de abril. Criada em 1952 por Juscelino Kubitschek, quando governador do estado, a honraria sempre serviu bem como instrumento de bajulação dos poderosos.
Dois dias antes da cerimônia, o governador Romeu Zema (Novo) assinou um decreto que congelou R$ 1,1 bilhão do orçamento das secretarias estaduais para 2025, afetando diretamente áreas como Saúde, Educação e Segurança Pública.
Na contramão dos cortes, os benefícios fiscais concedidos pelo governo continuam em expansão. Segundo levantamento do repórter Gabriel Ferreira Borges, publicado em O Tempo, as renúncias tributárias passaram de R$ 15,3 bilhões em 2022 para R$ 22,7 bilhões em 2025, um crescimento de 47,6%.
O setor de locadoras de veículos é um dos principais beneficiados. Justamente a área de atuação de um dos homenageados com a medalha.
Com a redução da alíquota do IPVA de 4% para 1% sobre veículos alugados e revendidos, o Estado deve abrir mão de R$ 3,9 bilhões em 2025. O valor é quase o dobro de todo o orçamento previsto para a Secretaria de Segurança Pública no mesmo ano.
A família Mattar, que controla a Localiza, foi responsável por 28% das doações de campanha para a reeleição de Zema em 2022.
Enquanto isso, servidores públicos seguem sem perspectiva de reajuste. O governo afirma que não há condição orçamentária nem para repor a inflação de 2024.
No século 18, Tiradentes foi executado por liderar uma revolta contra a cobrança de impostos. Em 2025, o nome do mártir é usado para homenagear empresários beneficiados por bilhões em isenções fiscais.
A história mudou. Agora, o sacrifício é coletivo. E a forca virou buffet, com canapés, coquetéis e vista para o casario colonial de Ouro Preto.
Lei Salim Mattar
Aprovado em 2023, o projeto de lei que regulamentou os benefícios para as locadoras de automóveis ficou conhecido como “Lei Salim Mattar”, em referência ao sócio mais notório da Localiza. O autor do projeto foi o deputado Zé Guilherme (PP), que também é pai do secretário de Estado de Governo de Minas, Marcelo Aro.
Palanque na TV?
Aro, aliás, estreou em 8 de abril um quadro no Balanço Geral, da TV Record, onde conduz longas reportagens com o mote da defesa do consumidor — um verdadeiro palanque, caso sua pré-candidatura ao Senado se concretize. O Blitz Record tem o mesmo estilo de abordagem do quadro apresentado pelo deputado federal Celso Russomanno (Republicanos-SP).
Esta Capivara de Paletó perguntou à Record — primeiro à direção de jornalismo e depois à comunicação institucional — o seguinte:
Há algum tipo de preocupação ou protocolo interno quanto a um possível conflito de interesses? O formato do quadro, em que Aro se apresenta como alguém que “resolve problemas”, quase como um justiceiro, tem forte apelo popular e, potencialmente, grande valor eleitoral. Isso é visto como um problema pela emissora?
A Record não respondeu.
Um dos patrocinadores do quadro é a Gerdau. Já um dos 171 homenageados pela Medalha da Inconfidência foi o diretor da empresa, Wendel Gomes da Silva.
Legendário
A foto abaixo é de Geraldo Teixeira da Costa Neto, o Zeca, ex-diretor executivo dos Diários Associados. Após ser destituído do comando do grupo de condôminos que controla os jornais Estado de Minas, Correio Braziliense e a TV Alterosa, Zeca passou a integrar o movimento Legendários.
Voltado para homens, o grupo combina pregações religiosas com atividades físicas ao ar livre. Já atraiu nomes como Gustavo Tubarão, Thiago Nigro (o Primo Rico) e Neymar pai.
Mais sobre os legendários
O que acontece na montanha ( Bebel Soares no Estado de Minas)
Musculoso, caro e sem mulheres por perto, Legendários não teria lugar para Jesus (Liniker Xavier na Carta Capital)
Helipóptero, o retorno?
Presidente do Republicanos em Minas Gerais, o deputado federal Euclydes Pettersen contratou para seu gabinete no Congresso Nacional um piloto de avião acusado de atuar para o tráfico de drogas ligado ao Primeiro Comando da Capital (PCC), revelou o Intercept Brasil.
O piloto Carlos Bertozzo foi investigado pela Polícia Federal e denunciado pelo Ministério Público Federal por fazer parte de uma organização criminosa que transportava cocaína da Bolívia para o Brasil. Ao Intercept, o deputado afirmou que o processo contra o piloto não foi concluído e que ele tem direito de provar sua inocência.
De Governador Valadares, Pettersen é o comandante do partido do senador Cleitinho Azevedo. Sempre falante e opinativo, o senador não se manifestou publicamente a respeito da contratação feita por seu líder partidário.
O pé rela no pó
Em 2013, um helicóptero de uma agropecuária ligada ao grupo de empresas do então senador Zezé Perrella e de seu filho, o então deputado estadual Gustavo Perrella, foi apreendido com mais de 400 quilos de cocaína durante uma operação da Polícia Federal no Espírito Santo. O piloto da aeronave era servidor da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, nomeado por indicação do herdeiro do ex-presidente do Cruzeiro. O episódio acabou rendendo uma das melhores marchinhas de carnaval da história recente de Belo Horizonte.
Jura?
O presidente Lula (PT) afirmou ser “candidatíssimo” à reeleição em 2026, segundo relatos de participantes de um jantar com líderes da base aliada na Câmara dos Deputados, nesta quarta-feira (23).
Equilibrista
O prefeito Álvaro Damião (União Brasil) tem se mostrado um verdadeiro equilibrista. Sem comprar briga com a cruzada moralista dos vereadores da direita e extrema-direita na Câmara Municipal, também cumpre agenda em Brasília, ladeado pelos quatro parlamentares petistas.
Na quarta-feira (23), esteve na capital federal e participou de reuniões com ministros do governo Lula. Foi recebido por Alexandre Padilha (Saúde), Esther Dweck (Gestão e Inovação) e Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais).
Importante
Na próxima semana, a newsletter não será enviada. As Capivaras vão aproveitar o feriado de 1º de Maio.
Quando começamos o projeto, em novembro do ano passado, estabelecemos seis meses para avaliar o interesse dos leitores e a viabilidade de tornar o trabalho sustentável. O prazo chegou.
Não pretendemos aceitar publicidade. As capivaras não têm rabo, justamente para não ficarem presas a nada (pausa para você abrir outra aba e checar: capivaras realmente não têm rabo?).
Tem uma ideia diferente? Uma sugestão mirabolante de como remunerar o trabalho sem vender a alma? Manda no WhatsApp. E aproveita para salvar o contato — vale para sugestões, críticas ou reclamações.
Mais importante ainda
Folgar no feriadão é um direito que nem todos têm. Mais de 34,6 milhões de trabalhadores brasileiros cumprem jornadas superiores a 40 horas semanais, em que a escala 6x1 é regra. Escrevi sobre isso nesta semana na CartaCapital, a partir das mobilizações do movimento Vida Além do Trabalho (VAT), que vão pautar o 1º de Maio.
O VAT foi criado por Rick Azevedo, balconista de farmácia que se insurgiu contra a jornada abusiva no TikTok, viralizou, foi eleito vereador — o mais votado do PSOL no Rio de Janeiro — e, junto com a deputada estadual Erika Hilton (PSOL-SP), tenta mudar a Constituição para reduzir a carga horária.
Leia: Sem folga no feriadão, o Brasil que não parou vai protestar contra a escala 6x1
Só vai
Uma dica para os trabalhadores que vão folgar no próximo feriado: vá ao Terceiro Festival do Queijo e da Cachaça, em Coroas, a melhor cidade do país chamado Minas Gerais.
Você não vai encontrar “Coroas” no mapa. Procure por Coronel Xavier Chaves, nome dado para puxar o saco de um poderoso. O nome é horroroso, mas a cidade é linda. Com 3.486 moradores (espero que ninguém tenha morrido de ontem para hoje), o festival começa na quarta-feira (30) e vai até domingo (4). Na sexta, tem show da Orquestra Mineira de Viola Caipira e, no sábado, a grande atração: Renato Teixeira.
A cidade tem poucas opções de hospedagem, mas está colada em Tiradentes, São João del Rei, Prados e Resende Costa, todas com bons hotéis e pousadas. No início do mês, assisti ao show do Renato Teixeira no Palácio das Artes — continua do caralho. Quer conhecer mais? Comece pelo melhor disco ao vivo já lançado no Brasil:
Reforçando o convite
Passa lá na Livraria Jenipapo na próxima terça (29) pra gente ouvir a Natália Viana falar sobre o livro dela e, claro, trocar uma ideia sobre jornalismo também.
::Expurgo 19::
Por que ler Asma (2024 – Editora Nós - 200 páginas) de Adelaide Ivánova
Com viagem marcada para o Recife, procurei livros de autoras contemporâneas da região. Tive indicações interessantes, que vieram até por áudios de whatsapp com aquele sotaque delicioso de ouvir, e o primeiro a chegar foi exatamente Asma.
Entre os vários trabalhos do dia a dia, devorei o livro, que me deixou quase com falta de ar.
Asma evidenciou para mim porque a revista Quatro Cinco Um elegeu a obra como uma das melhores de 2024.
Ao contrário do que possa parecer, não é um livro contendo vários poemas. É uma narrativa única, uma das prosas poéticas mais originais que li nos últimos tempos.
Não costumo ler poesias aleatoriamente; sigo o ritmo e a sequência nos quais a obra foi editada. E, para mim, ficou claro que seria um texto, mesmo que dividido em seis livros, ou capítulos, justamente pela forma como Adelaide uniu todas as histórias, por elementos em comum — a imigração, a violência contra os povos do campo, a opressão sofrida pelas mulheres, o julgamento decorrente de um processo criminal, a descrição de passagens pelo sertão, norte de Minas e São Paulo, a morte social daqueles que são submetidos ao sistema penal no país.
Isso tudo coadjuvando com uma infinidade de outros elementos que passam pela literatura canônica, pela cultura pop, pela explicação científica de algumas doenças como a própria asma, pela linguagem oral do interior do país e outros países latinos, por palavras criadas pela própria autora – e até pelo que ainda não foi escrito,como receitas de mandingas e remédios indígenas e quilombolas.
A forma como Adelaide compôs o livro me inquietou. Acabei conversando sobre ela com minha amiga e escritora Flávia Peret, que sempre acolhe minhas reflexões sobre literatura com uma oitiva atenta. Ambas lemos o texto na sequência, e ficamos surpresas com o formato, que por si só – me permito a repetição – já vale comprar o livro e passar o fim de semana dentro dele.
Asma pode ser considerado um monólogo de Vashti Setebestas, uma figura parte mulher parte vaca, uma entidade, um ser indecifrado, com mais de três mil anos, claramente exilada e violentada. Ao longo dos vários textos, ela dialoga ou narra sua experiência na companhia de outros seres femininos – trabalhadoras de salão de beleza ou de um canavial, estrangeiras degradadas, quilombolas benzedeiras e condenadas cumprimento penas.
Em algumas partes do livro, há disrupção da violência, onde a revolta e a vingança ganham musicalidade e ironia, como nas Valsinha da mulher pobre #1 e #2 inspiradas em música de Vinícius de Moraes e texto de Franz Kafka.
A presença de cordel, especialmente no Livro 2 – Memórias do KKKárcere – mostra como Adelaide retira de sua origem pernambucana sua originalidade.
No Livro 5 – Diccionario de Medicina Phantastica e Das Sciencias Populares – Adelaide cria textos riquíssimos, inspirada na sabedoria popular de mulheres de várias idades e de diferentes regiões do interior do Brasil. Ao leitor são apresentadas plantas usadas para o aborto e para curar doenças sexualmente transmissíveis, técnicas para fazer render alimentos e matar a fome dos filhos e uma série de procedimentos que só o contato com a cultura popular revela.
A escolha das citações presentes em cada texto também comprova como a pesquisa de Adelaide para escrever Asma faz do livro um dos maiores de 2024.
Enfim, não se sabe o que virá na página seguinte. Mas, certamente, o que ele deixa na gente é uma sensação de que o expurgo de sua leitura chega como algo muito mais potente do que um broncodilatador.
essa marchinha de carnavaaaal hahaha nao conhecia, o brasileiro é mermo maravilioso <3
e obrigada pela leitura e resenha, de coracao!
Daniel, sobre essa patacoada de 21 de abril é sempre bom também ficar atento a certas coberturas televisivas, que hoje estão mais preocupadas em passar a limpo a agenda do governador e do candidato ao seu espólio em 2026. e sobre Adelaide, ela tem um perfil aqui no subs, e é excelente. vou comprar o livro!